D. Henrique
Foi o 17.º rei de Portugal.
Nasceu em Lisboa a 31 de Janeiro de 1512, fal. em Almeirim em igual dia do ano de 1580. Era filho de el-rei D. Manuel, e de sua segunda mulher, a rainha D. Maria; irmão de el-rei D. João III.
Destinando se à vida eclesiástica foi nomeado aos 14 anos de idade prior comendatário de Santa Cruz de Coimbra, sendo aos 22 elevado a arcebispo de Braga pelo papa Clemente VII. Finalmente, aos 27 anos, em 1539, foi nomeado inquisidor-mor de Portugal e suas possessões ultramarinas, mas o pontífice Paulo III não quis reconhecer esta nomeação, o que deu causa a uma luta muito curiosa entre a coroa portuguesa e a corte pontifícia.
De Braga passou a Évora, em 1540, sendo o primeiro arcebispo, que existiu naquele arcebispado, e 6 anos depois, em 1546, Paulo III lhe concedeu o chapéu cardinalício. Em 1561, Pio V o instituiu legado a latere no reino de Portugal, e por morte do arcebispo de Lisboa, Fernão de Vasconcelos, em 1564 foi transferido para este arcebispado.
Segundo se lê nas Memorias historicas sobre alguns mathematicos portuguezes e estrangeircs domiciliarios em Portugal ou nas conquistas, por António Ribeiro dos Santos, o infante D. Henrique não foi somente versado nas ciências eclesiásticas. Teve por mestre o grande matemático Pedro Nunes, com quem aprendeu aritmética e a geometria dos Elementos de Euclides; o tratado da esfera; as teorias dos planetas; parte da grande composição dos astros de Ptolomeu; a mecânica de Aristóteles, toda a cosmografia; o uso dos instrumentos antigos, e de alguns que seu sábio mestre havia inventado para a pratica da navegação.
Estas indicações constam da dedicatória do tratado de Crepusculis de Pedro Nunes a el-rei D. João III. Lê-se ainda nas referidas Memorias: «Os estudos e indagações, que sobretudo o desvelavam, como os de seu maior gosto, e propensão, foram os da Astronomia; e tanto folgava com eles, que ainda depois de se achar de todo entregue aos estudos e coisas eclesiásticas, costumava quase todos os dias propor a Nunes algum problema árduo e pedir-lhe que o resolvesse por demonstrações de Matemática.»
0 infante D. Henrique era muito fanático, e deu grande impulso ás perseguições contra os judeus. No entretanto, mostrou-se adverso à Companhia de Jesus, quando ela pretendeu introduzir-se em Portugal. Parece, porém, que modificou depois as suas ideias, porque se tornou protector e um dos mais dedicados devotos daquela corporação religiosa. Foi ele quem entregou aos jesuítas a instrução pública, fundou o colégio de Santo Antão, o primeiro que a Companhia de Jesus teve em Portugal, assim como o colégio do Espírito Santo, em Évora, que se construiu em 1551, e se inaugurou em 29 de Agosto de 1533, com a abertura solene das escolas publicas de Teologia Moral, e letras humanas (humanidades), únicas disciplinas que então era permitido ensinar fora da Universidade de Coimbra.
Conseguiu mais tarde erigir também em Évora uma Universidade sujeita à mencionada Companhia, a qual se inaugurou solenemente em 1559, sendo visitada em 1560, com a maior pompa, pelo seu fundador, acompanhado do geral dos jesuítas, o padre espanhol Francisco de Borja, que mais tarde a igreja canonizou.
Quando em 1557 faleceu D. João III, ficou herdeiro do trono seu neto D. Sebastião, que apenas contava 3 anos de idade. A regência do reino durante a menoridade do novo rei foi confiada à rainha D. Catarina, viúva de D. João III, a quem competia.
D. Catarina assumiu a regência, e chamou para seu auxiliar e conselheiro, seu cunhado, o infante cardeal D. Henrique, que também ambicionava o poder, que por este motivo resignou o arcebispado de Évora no bispo do Algarve, e veio para a metropolitana de Lisboa, por bula de Pio IV. Aos jesuítas não convinha a regência da rainha, senhora de ânimo varonil e decidido, e procuraram pela intriga afastá-la, ficando a regência entregue ao infante.
A questão da escolha dum preceptor para o jovem rei, veio mais influir a favor dos jesuítas que incitaram o infante a impor-se, para que o preceptor fosse nomeado entre os padres da Companhia de Jesus, e assim o conseguiram, recaindo a nomeação no padre Luís Gonçalves da Câmara, a que D. Catarina acedeu contra vontade.
As intrigas prosseguiram, porque os jesuítas preferiam que a regência recaísse por completo no infante cardeal D. Henrique, que eles dominavam, até que a rainha se resolveu a desistir do governo a favor do seu cunhado, e próximo do Natal de 1560 chamou de súbito D. Henrique, e declarou-lhe que precisava descansar, e por isso lhe entregava a tutela do rei e do reino. Em vista desta declaração formal, D. Henrique receou como sempre; o poder atraía-o e assustava-o, e não se atrevia a tocar-lhe.
Com humildade procurou frouxamente dissuadi-la comi várias razões de semelhante intuito, e D. Catarina convencionou que escreveria uma carta aos Estados do reino, declarando-lhes a sua resolução, e pedindo que a aprovassem.
A ideia de que o poder viria a cair nas mãos do cardeal D. Henrique assustou a todos os que lhe conheciam a índole, e uma manifestação imponente, vinda de todos os pontos do reino, da nobreza, do clero e do povo, veio suplicar a D. Catarina que desistisse do seu propósito. Os jesuítas, porém, despeitados com a derrota, levantaram tais dificuldades ao governo de D. Catarina, que a rainha dois anos depois, declarou de novo e terminantemente que resolvera entregar a regência.
Para isso reuniu cortes, mas os jesuítas tinham agora por si um habilíssimo diplomata, Lourenço Pires de Távora, que lhes era muito dedicado e à corte de Roma, todos interessados na regência de D. Henrique.
0 infante-cardeal ficou, portanto, proclamado regente em 23 de Dezembro de 1562. (V. Catarina, D.). Esta regência poderia ilustrar-se dalgum modo, se o cardeal entregasse o governo nas mãos do hábil Lourenço Pires de Távora, que tanto contribuíra para que ele a assumisse, mas D. Henrique considerava-o um censor incómodo, e longe de o querer para ministro afastou-o do reino, nomeando-o governador de Tânger.
Então os jesuítas governaram o reino à sua vontade por intermédio do regente, mas ainda isso lhes pareceu incómodo, e assim que viram que o padre Luís Gonçalves da Câmara, confessor e preceptor do jovem rei alcançara certo domínio no espírito de D. Sebastião, envidaram todos os seus esforços para que fosse proclamada a maioridade, o que na verdade se realizou em 1568 tendo o rei apenas 14 anos de idade.
No relatório, que o infante-cardeal apresentou a seu sobrinho neto, do que sucedera durante os seis anhos da sua regência, lia-se o seguinte, que vem publicado nas Memorias d’el-rei D. Sebastião, por Diogo Barbosa Machado, parte III, liv. I, cap. III. «Com a mais profunda veneração se receberam os decretos do Concilio Tridentino, e exactamente se praticaram nos Sínodos provinciais celebrados em Braga e Lisboa.
Aumentou-se com copiosas rendas a Universidade de Coimbra, por ser a Palestra Universal, em que a ciência triunfa da ignorância, e da mesma liberalidade se usou com os quatro Colégios da Companhia, fundados em Coimbra, Braga, Évora e Lisboa, para a instrução dos engenhos, e cultura das virtudes». D. Henrique retirou-se então para o mosteiro de Alcobaça, e não se tornou a ouvir falar nele, até que em 1578 as desgraças de Alcácer Quibir de novo o apresentaram.
Em 30 de Novembro de 1566 fundou o seminário de Santa Catarina, e nesse mesmo ano celebrou o concílio provincial. Mandou executar na diocese de Lisboa todos os decretos do Concílio Tridentino que tratam da reforma dos costumes. Obteve um jubileu anual para os que se confessassem e comungassem nas quatro festas principais do reino, o que já havia conseguido para Braga, e depois para Évora.
Estava tão afastado dos negócios, que D. Sebastião, nem por mera formalidade, o consultou quando se tratou daquela fatal expedição, nem lhe deixou a mais pequena parte no governo do reino quando Partiu para África. Apenas, porém, chegou a notícia do desastre, os governadores do reino mandaram logo a Alcobaça avisar o cardeal, que era o único sucessor do trono. D. Henrique saiu de Alcobaça a 13 de Agosto e chegou a Lisboa no dia 16.
Agitado por ambições senis, sentia grande desejo de cingir a coroa, mas como não havia notícia oficial da morte de D. Sebastião, reuniu uma comissão encarregada de deliberar sobre o que se deveria fazer. A comissão deliberou que D. Henrique governasse o reino como curador, enquanto não houvesse notícia segura da morte de D. Sebastião. A 24 de Agosto assumiu efectivamente essas funções, mas logo no dia 29 cingiu a coroa, por ter chegado de África uma carta de Belchior do Amaral, prisioneiro dos mouros, que declarava ter visto e reconhecido o cadáver de D. Sebastião.
0 povo assistiu com tristeza à coroação, mas aplaudiu os primeiros actos do soberano, que puniu Pedro de Alcáçova, tomando por pretexto o imputar-lhe o conselho da expedição de África, mas na realidade para satisfazer vinganças populares, e que, abolindo algumas medidas fiscais vexatórias que D. Sebastião tomara para arranjar dinheiro e ordenando que pudessem ser de novo confiscados os bens dos judeus condenados pelo Santo Ofício, satisfazia ao mesmo tempo os interesses e as paixões fanáticas do povo. Todos percebiam, que o reinado de D. Henrique não podia ser duradouro, seria apenas um intervalo entre o drama de Alcácer Quibir e a sucessão do reino, novo drama ainda mais terrível, porque não se podia esperar que vivesse muito tempo, por ser já velho, doente, e além disso pelo seu estado eclesiástico, não podia ter herdeiros directos ao trono.
Filipe II de Espanha era um dos pretendentes, por ser neto de el-rei D. Manuel, por sua mãe, a infanta D. Isabel, e portanto sobrinho do cardeal. No nosso artigo sobre Filipe II de Espanha e I de Portugal, vol. III do Portugal, a pág. 489 e seguintes, vêm largamente descritas as providências que este monarca tomou para alcançar a posse de Portugal, e os nomes dos outros pretendentes ao trono, um dos quais era D. António, prior do Crato.
As intrigas aglomeravam-se. Para dispor as coisas a seu modo, Filipe II mandou a Portugal o duque de Ossuna, Pedro Girão e Cristóvão de Moura, fidalgos aparentados com a primeira nobreza de Portugal. Esses fidalgos indicaram ao cardeal rei como sucessor da coroa o monarca espanhol, mas D. Henrique parecia inclinar-se mais ao duque de Bragança. Ossuna chamou os jesuítas em seu auxílio; o povo inquietava-se.
0 senado da câmara de Lisboa, no intuito de assegurar a sucessão, lembrou que melhor seria que o cardeal se casasse, pedindo-se a indispensável dispensa do papa. D. Henrique recusou este alvitre, mas como o povo insistisse resolveu-se a aceder. Propuseram-lhe então uns a viúva de Carlos IX, de França, Isabel, segunda filha do imperador Maximiliano II, e outros a filha mais velha do duque de Bragança, Maria, que não tinha ainda 14 anos, por quem afinal D. Henrique se decidiu.
0 monarca mandou pedir ao papa Gregório XIII que lhe concedesse a dispensa, e escreveu ao cardeal Carlos Borromeu para lhe advogar a pretensão. Em Espanha logo se soube esta resolução, e Filipe 11 expediu ordens aos seus delegados em Roma para que a dispenso fosse recusada, o que mais irritou D. Henrique.
A situação era deveras difícil, porque os sofrimentos do cardeal se agravavam; era tal o seu estado de fraqueza, que se alimentava com leite de mulher, servindo-lhe de ama até à morte, Maria da Mota, de nobre geração, casada com Rui Fernandes Cota. 0 povo, vendo o rei em tão iminente perigo de morte, insistia para que fosse nomeado um sucessor. D. Henrique convocou então as cortes em Lisboa, em Abril de 1579, e obtendo que nele delegassem perfeitamente o direito de escolher sucessor, convidou todos os pretendentes ao trono para exporem o que entendessem a bem dos seus direitos.
Depois de longas e complicadas controvérsias em que Espanha se salientou, procurando por todos os modos colocar-se em primeiro lugar, o cardeal, que nada havia deliberado convocou de novo as cortes para Almeirim, em Outubro do mesmo ano. Nessa assembleia, onde se ergueu, vibrante de patriotismo a voz de Febo Moniz, foram proclamados os nomes dos 5 homens que tinham de governar o reino por morte do cardeal: D. Jorge de Almeida, arcebispo de Lisboa; Francisco de Sá, camareiro‑mor do reino; João Telles, João Mascarenhas e Diogo Lopes de Sousa, presidente do tribunal de justiça de Lisboa. Começava o ano fatal de 1580; a peste e a fome assolaram Portugal.
Mais de 25.000 pessoas morreram desta epidemia. O rei e a corte foram para Almeirim, e foi ali que a 9 de Janeiro se realizou nova sessão de cortes, sendo o cardeal‑rei conduzido à sala numa cadeira. D. Henrique lassou os últimos dias muito atormentados.
Estava moribundo D. António, prior do Crato, que ele expulsara do reino, achava-se em Almeirim; D. Catarina, mulher do duque de Bragança, cuja causa ele abandonara, vira junto do seu leito queixar-se e lançar-lhe em rosto a sua fraqueza; D. Cristóvão de Moura ameaçava-o com as iras do seu amo, que reunia ostensivamente o seu exército nas fronteiras de Portugal; o povo tumultuava em torno do paço, gritando que Portugal, com a morte do rei, perdia a sua independência.
Perseguido pelos remorsos, revolvendo se com amargura no leito de espinhos que ele mesmo preparara, D. Henrique entregou a administração do reino aos 5 governadores nomeados. Pouco tempo sobreviveu. A sua morte não foi lamentada por ninguém. Quis a fatalidade que na ocasião mais critica da vida de Portugal, fosse chamado a reger os destinos do país um homem, sempre incapaz de reinar, e ainda muito mais incapaz, por estar à beira do túmulo. Assim acabava a dinastia de Avis, tão brilhantemente começada por el-rei D. João I. D. Henrique conhecia perfeitamente o grego, o hebraico e o latim.
Escreveu: Meditações e homilias sobre alguns mysterios da vida de nosso Redemptor, e sobre alguns logares do Santo Evangelho, que fez o Serenissimo e Reverendissimo Cardeal Infante D. Henrique por sua particular devoção, Lisboa, 1574. Saíram as Meditações com licença do seu autor, por diligência de Frei Luís de Granada, como este declara na sua Carta proemial al lector. Os jesuítas do colégio de Évora fizeram depois uma edição em latim, que se publicou em 1576, e em 1581.
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